O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 13 de março de 2008

O ramo dourado do irreparável

O Diagnóstico.
Desalento e tristura. Desalento e tristura são só dois dos sentimentos possíveis dos que se sentem afectados pelo Irreparável.

O Irreparável

“O Irreparável é o facto das coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável.
(…)
Que o mundo seja assim como é – eis a raiz de toda a alegria e de toda a dor puras. Uma dor ou uma alegria por o mundo não ser como parecia ou como queríamos que fosse são impuras e provisórias. Mas o grau extremo da sua pureza, no assim seja, dito ao mundo quando desapareceu toda a legítima causa de dúvida ou de esperança, dor e alegria não têm por objecto qualidades negativas ou positivas, mas o puro ser-assim, sem nenhum atributo.
(…)
O mundo do feliz e do infeliz, o mundo do bom e do malvado contêm os mesmos estados de coisas, são, quanto ao seu ser-assim, perfeitamente idênticos. O justo não vive num outro mundo. O eleito e o condenado têm os mesmos membros. (…) O que muda não são as coisas, mas os seus limites. É como se sobre elas estivesse agora suspensa qualquer coisa como uma auréola, uma glória.” Agamben, A Comunidade que Vem, trad. António Guerreiro, pp. 71 a 73

O Assim
O assim seja é a aceitação de tudo como acontece, nos acontece, a aceitação do que somos e como somos, do que são os outros e como são os outros. Esta aceitação sem limites é que pode mudar os nossos limites. E, se mudam os nossos, mudam os dos outros. Porque o ser assim e não de outro modo é que deixa ser e funda como somos, uns com os outros, limite e “deslimitação” permantes, a comunidade por vir. A comunidade que vem, vem de nós, os que sentido o Irreparável, o ser nos seus modos diversos e em nós, não o negam mas não se apropriam dele – inglória tarefa de tentar manter o que muda para outro modo, irá ser de outro modo, outro assim e outrossim, de nós apenas outro sim – mas não o querem ou desejam. Sermos singularidades sem identidades e sem estarmos cada um a pensar “sou assim” e “queria ser de outro modo”. Só há este assim como somos. Aceitar isto é também aceitarmos ser, não singularidades, mas SIMgularidades!

O SIM
Peço-o emprestado a Nietzsche que todos conhecem, mas não o peço emprestado para o explicar. Já todos o sabem, peço para o cantarmos. Assinarmos com ele o dia que já nasce, assim como nascer, cinzento ou ensolarado, assim como ele for o aceitaremos e, com ele, cada um de nós e todos, SIMgularidades que em todos os modos e de todos os modos somos a comunidade que em torno de uma Ideia, a de serpente, abraçaremos todos e cada um, como se nesta roda que é a Vida, o Irreparável, nós recebêssemos o que está suspenso em cada um e nisso viesse a bênção do Amor.

O Amor
“Ver simplesmente algo no seu ser-assim: irreparável, mas nem por isso necessário; assim, mas nem por isso contingente – é isto o Amor.” Op.cit., p. 86
Assim, só assim se faz o caminho da serpente. Com todos e com cada modo de sermos assim como somos, ainda somos. Não singularidades, mas SIMgularidades. Esperando o que está suspenso. Não vendo, relendo, revendo o que caiu, quem caiu, quem atirou ao chão. O que está suspenso deve vir do céu. Ser azul ou luz. Assim:

The Golden Bough - Joseph Mallord William Turner

Que cada um, na comunidade da serpente emplumada, sinta suspenso na sua vida o ramo dourado que Turner vislumbrou.





5 comentários:

Paulo Borges disse...

Assim seja, Isabel ! Grato pela sua luz.

Joana Serrado disse...

Olá isabel. Quem também fala da primazia do Sim incondicional (que eu ando a estudar isso agora, por agora) é Derrida, enquanto leitor de Nietzsche e Levinas.

Isabel Santiago disse...

Olá Joana! Sim, sim e sim! Obrigada. Os três deixaram muitos refrões em mim. Do Levinas nem me posso aproximar muito...sinto tudo o que não sei e sobretudo não consigo pelos outros. E se calhar pelo Outro. Mas é por isso que me devo aproximar. Só que às vezes fujo. Um sorriso, ou melhor um ramo dourado para estes dias mais difíceis. Lê-los é uma grande redenção. Então vou à procura de um sorriso dourado para a Joaninha voa-voa, como me ensinou uma mulher dourada que existiu na minha vida.

Anónimo disse...

SIM.
:)

Isabel Santiago disse...

Outro SIM para a Joanarssousa!