O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 17 de abril de 2008

Da "normalidade" como doença

"É o ego que resiste. Tantos combates lhe foram necessários para afirmar-se e eis que agora lhe é exigido que passe ao segundo plano, que dê lugar ao si mesmo. O ego toma isso como um ameaça e tem razão. O indivíduo como ego é ameaçado, é convidado a morrer... Mas o indivíduo que não tem medo, que aceita esta ameaça e que abre mão, torna-se uma pessoa, alguém através do qual o si mesmo, a presença do Ser essencial, pode ressoar e manifestar-se.
A "normalidade" (que eu chamo de "normose" para fazer a conexão com neurose e psicose), mesmo se Freud a chama de "cura ou saúde", pode ser considerada uma doença do Ser essencial. Esta normalidade pode tornar-se um obstáculo no caminho da verdadeira realização; é preciso saber colocar em questão a imagem que cada um tem de si ou que a sociedade nos impõe e, através de uma certa solidão, expressar a maneira única pela qual o Ser quer manifestar-se em nós" - Jean-Yves Leloup, Enraizamento e Abertura, Petrópolis, Vozes, 2003, p.41.

14 comentários:

Anónimo disse...

Perdamo-nos mas não perdamos a conferência do Jean-Yves Leloup no dia 22 em Lisboa !

luizaDunas disse...

BonDia,

Isolados, os termos normalidade e doença são difíceis de sentir; no entanto, associados a normose já dá para lhes sentir a tensão, a repressão, o esforço, a frustração, o tédio, a depressão, a estagnação. Bom termo este, o de Jean-Yves.

A reflexão sobre a expressão do Si é muito delicada e complexa, apesar de também ser simples. O mau-estar é bem esclarecedor de se estar desajustado ou negligente de Si próprio. Desenraizados do Si nunca estamos, nem separados, nem perdidos.

Há uma frase de Lao-Tzé que eu gosto particularmente: Uma pessoa ficará bem quando se fartar de estar mal!

Anónimo disse...

Esta sociedade definha de overdose de "normose": trabalho e diversão, trabalho e diversão, trabalho e diversão - iguais formas de nos distrairmos do essencial, de esquecermos a transcendência disso, o não-sermos-para-estar-assim-no-mundo.

Anónimo disse...

Cara Luíza Dunas, não sei se o Lao Tsé escreveu isso, mas o problema é que muita gente não se farta de estar mal, agarra-se a isso para ter ou ser alguma coisa, mesmo que tal se lhes volva num inferno...

Ana Margarida Esteves disse...

Escrevi ontem na Nova Aguia:

"Todos, ou quase todos nós fomos educados de uma maneira na qual a nossa identidade foi construída "de fora para dentro", como espelho das impressões dos outros - pais, outros familiares, colegas, amigos, clero, empregadores, qualquer pessoa que passe na rua - em vez de dentro para fora.

Um exemplo disso é o facto de as famílias Portuguesas terem o maior índice de endividamento da OCDE, logo a seguir aos EUA. Muitas famílias ainda educam os seus filhos de acordo com os princípios de que "a aparência é tudo" e "o que é que as pessoas podem pensar".

Parecer estar tão "bem" ou "melhor" que @ vizinh@, conseguir ultrapassá-l@ nas hierarquias profissionais, estéticas e materiais é na prática considerado muito mais importante do que ser-se feliz e autêntic@.

Como frutos de uma sociedade pós-ditatorial e estruturalmente autoritária devido a séculos de inquisições das mais diversas, falta-nos a capacidade de criar uma vida interior autêntica, que por sua vez garanta a liberdade, a responsabilidade e a sanidade do nosso espírito.

Ao contrário do que tantas vezes se diz nos média, nas escolas e nos púlpitos das igrejas, o maior problema do Portugal actual não é individualismo a mais. Pelo contrário, é individualismo a menos."

Anónimo disse...

Sobre a cristalização egótica em modos e personalidades que "velam" ou asfixiam o ser essencial acho interessante alguns estudos do Eneagrama. Com prevenção, no sentido de que o uso deste conhecimento leva algumas pessoas a obsessões e a formulações simplistas. Quanto a Lao-Tse acho (pelo menos num sentido)que há um certo trabalho que obriga a "esgotar" (como a fadiga de materiais) certos condicionamentos pessoais. Em todo o caso, a angústia e o sofrimento são fases do despertar em que as pessoas devemos ser capazes de estar sem fugir. Não há valor no sofrimento em si mas no modo em que somos capazes de fazer-lhe frente. Como diz um aforismo persa: " A rosa é rosa mas também pode ser espinhosa". Há cousas que não se podem poupar.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eneagrama

Anónimo disse...

O nosso orgulho não nos deixa ver quão doentes andamos... Por isso, quando nos perguntam "Tudo bem ?", todos nos apressamos a responder "Tudo bem !". Mas a própria pergunta já denuncia o medo de que nem tudo vá bem... O que já é uma forma de algo ir mal. Isto não é pessimismo. É realismo.

luizaDunas disse...

Caro Comentador,
...achei engraçado teres dito que não sabias se Lao-Tsé tinha proferido aquela frase, pois quando a transcrevia pensei nisso mesmo, relativamente à expressão, não quanto à autoria. Mas o conteúdo é que importa, em todo o caso.

Sim, percebo o que dizes. É que o inferno tem os seus encantos...

Anónimo disse...

Cara Luíza, podes dizer quais são os encantos que encontras no inferno ? Não porque duvide que os tem. Apenas para verificar se são os mesmos que nele encontro... Se não for indiscrição, claro. Ou melhor, se não te importares com a minha indiscrição.

luizaDunas disse...

BonDia Comentador,

Eu referi que o inferno tem os seus encantos em modo de dedução leve ao que disseste. Se o inferno atrai tanta gente, terá os seus encantos. Mas em face da tua pergunta, que aceito, tentarei olhar de uma perspectiva mais pessoal, mais focada e também mais densa.

Faço-me um zoom, aproximo-me para me ver mais próximo, não demasiado pois não quero correr o risco de me desaparecer da vista, os horizontes de que me aproximo se me ponho a observá-los contemplativa ou meditativamente desdobram-se em muitos outros, inclusive e muito especialmente a ideia de mim e a de inferno.

Bom, pelo que vejo a uma certa distância, há vários tipos de inferno, e várias maneiras de não estar bem. Há dores que queimam que são como o Fogo alquímico direccionado para a purificação; ou para o despertar, aqui refiro o que o José Lozano disse - não há razão para fugir só porque dói. Há certas dificuldades que estão ao serviço da expressão ou (re)descoberta da nossa essência… não vale irmos à gaveta dos paliativos e chupar uns rebuçados.

….
…..
Não está a ser fácil falar-te dos meus infernos, Comentador. Mas que ando por lá, ando. E não ando.
...


O desejo. É encantador.
...


.....
Poderás vir falar-me dos teus, escuto-te.

Anónimo disse...

Infernos são profundezas,
entranhas ocultas e ardentes,
cavernas que gemem e abrasam,
vorazes, inóspitas, dementes !

luizaDunas disse...

Para ti

O dia encheu-se de um Momento
e o Momento volver-se-á dias sem conta por não se dar conta
dois olhares cruzam-se e descobrem-se. Não há palavras
nem se proferem futuros nas entrelinhas,
não há necessidade, apenas intimidade
E nesta o encontro já se consumou
sem a manifestação do desejo
algo se preencheu no momento exacto em que se fez falta.

Mas haverá sonho e haverá saudade.

Anónimo disse...

Sonho e saudade nada são
se ao inferno não descem e iluminam,
desincarnados e pobres vão
escravos do desejo que declinam...

luizaDunas disse...

Assim fico... a pensar no desejo declinado, que me tocou, e nos sonhos feridos, que me lembraste.