O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 7 de abril de 2008

Fado embarcadiço

Quando eu voltar,
sei que os meus pés vão pegar fogo,
e que o meu coração vai desdobrar-se em mil braços,
os seus dedos desenhando mudras
que são os contornos do mapa
onde se cruzam as geografias do mundo
e da alma.

Sei que os meus olhos vão medir o tempo
contemplando os matizes das horas que passam
sobre as àguas do Tejo,
e que os meus lábios vão contar o quanto o mundo é belo
quando visto através dos olhos de terra
que, encobertos, julgam só ver
o derrocar de tudo.

Olhos de serpente
que parecem olhos predadores
a quem perdeu a fé num mais-além
e se enclausurou nas misérias da sua carne,

olhos alquímicos
de oceânica esmeralda,
que desencombrem o seu tenebroso esplendor
a quem tem pés de pólvora
e o peito em permanente combustão.

O teu brilho viperino expulsou-me da vida mansa,
e a ti me há de fazer voltar
quando descobrir o centro sagrado
onde que os pontos cardeais se encontram,
e o riso universal floresce nas espirais de luz
que esperam nas partículas de cada ser.

Providence, RI, EUA, 07/04/2008

5 comentários:

A.Tapadinhas disse...

O teu brilho viperino trouxe-me até aqui, ajudado pelo comentário no Estórias de A.V. Pode ser este o centro sagrado onde nos continuaremos a encontrar. :)
António

Anónimo disse...

Fado embacadiço II
Quando tu voltares
Vai haver festa na alma
E o esplendor de todos os sóis
Vai incidir nas pedras incendiadas dos teus passos
De regresso, trarás contigo nas asas da viagem
Tatuadas de sol, a flor do sal…
O rosto dos navios
Desenhará sombras
No teu coração cansado
De embarcadiça
E como um marinheiro bêbado
Trocarás o passo do enjoo da terra firme;

Daqui lançaremos as runas
Para que o caminho se abra e nasçam rosas
Nos caminhos do céu
E quando chegares ao labirinto,
Ao corpo falante da serpente
Decifrarás o enigma do Sem Nome.
Os signos serão para ti linguagem clara
Que no chão florirá em novos astros
Decifrarás os mistérios e não perguntarás:
- Quem da minha vida soltou a ligação das páginas
E rasgou a solução dessa charada?
- Quem derrubou os versos na sala escura
E desprendeu a linha
Que juntava as palavras às ideias?

Daqui te responderão
Que a palavra semeou no teu peito
Como em campo lavrado
Um brilho novo
De redivivo renascer
Daqui se pedirá à lua, nossa irmã
Que seja no tecido do céu
Esfera de fogo e plena
Se abra em clareiras
Para a tua saudade
Se embebedar de luz.
Daqui te esperarão impérios de alma
De asa abertas, águias sobrevoarão
O céu de Lisboa
E os pássaros não temerão o seu voo.
Num círculo de asas
Teus olhos poisarão no chão da terra firme.

Um movimento de ondas lamberá os teus pés
E renascida
Como Vénus serás, Ó Margarida!

:-)

Joana Serrado disse...

"a vida mansa". Agostinho da Silva tambbém falava da vida mansa.
Está muito bonito, Ana M. (mas o teu outro estilo, rapper e das epopeias nórdicas não ficam atrás)

Joana Serrado disse...

Para não falar do obscuro, claro...

Ana Margarida Esteves disse...

Muito obrigada pelo lindissimo poema, obscuro, e pelas carinhosas palavras, Joana:-)!

Um forte abraco para os dois.