O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 28 de setembro de 2008

Munde é fete pa vivé

Mãe Velha

Dibaxo-di bo foguera
Bô cria nôs desse manera
Kbô saia prete kbô lincim
Bô mostrá nôs oké ke nôs
Oh mãe oh mãe oh mãe oh mãe
oh mãe velha oih
Mãe velha oih mãe velha
Tcham cantope esse cançao
Pa legrope bô coraçao
Mãe velha mostra nõs
Munde é fete pa vive
Tambem ele é fete pa morré
Pa ama e sofre
Munde é fete pa vivé
Munde é fete pa morre
Munde é fete pa ama
Tambem pa sofre

Cesaria Evora

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Ilha de Santiago


(refrão)
Ilha de Santiago
tem corpinho de algodón
saia de chita cu cordón
um par de brinco roda pión.

Na ilha de Santiago
tem nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gómi cu Zezé
Nhu Raúl lá di fundo Ruber da Barca
Na Ilha de Santiago
tem Caetaninho, tem Codé Nhu Arique cu Ano Nobo
Nha Bibinha lá di fundo Curral de Baxo

Na Ilha de Santiago
Tem Séma Lópi, tem Catchás, Djirga, Bilocas Ney,
Ntóni Dente d'Oro lá di fundo San Dimingo.

Orlando Pantera
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A terra natal, útero de espanto e ancestralidade, é o chão de onde brotam as vidas, os sonhos, as ideias com seiva e saliva a fermentar os interstícios duma Língua de revelar o mundo e as feridas da separatividade. A Fala que se profere das entranhas da Língua Materna, gramática de fogo e perdição, não se esgota na profusão das palavras, posto que ter um filho é perdê-lo e entregá-lo ao sofrimento e à morte prometida, mas também é proferi-lo, com a alma inteira e abençoá-lo, transmitir-lhe a força inominável que irrompe da terra e torna os homens capazes de si.
Não se trata da Pátria desentranhada do coração e da entrega plena à vida, essa abstracção que vive à custa das espadas, dos punhais e do desejo de domínio que torna o mundo inabitável. Essa egolatria derramadora de sangue e tomada pela bebedeira negra do progresso. É a Pátria firmante, que une o mais fundo e o mais alto, o abismo e a exaltação.
Por isso a Mãe nunca morre. Alarga-se, estende-se, torna a vida vivenciável e a morte arável. “Mostra-nos quem nós somos” e mostra-nos que nada que venha ao nosso encontro no mundo é imundo ou rejeitável. Na condição de filhos da Mãe tudo nós merecemos e não merecemos mais do que tudo. Por isso quem nasce no horizonte rasgável da terra natal é da terra toda, em qualquer sítio pode espraiar-se a sua humanidade, comunicável e parturiente.
Na terra natal estão os que foram paridos na nossa abertura a nós e ao mundo, a nossa “época”, essa epochê demiúrgia, os que nunca partirão do nosso coração, os que alimentam a ânsia do regresso, os que falam a Língua dos elevados à condição de eternos, os Mano Mendi, os Kaká, as Nha Nácia Gómi, os que se dão a beber na urdidura das tardes de domingo, os que nos chegam quando a vida nos parece vazia.
Só a Frátria pode trazer o futuro para dentro das vidas insatisfeitas. Só o respeito pela supremacia dos que se fazem ao mar e se desfazem do que não pode ser criado. Pode construir-se um mundo de blocos culturais e políticos, cada qual no seu lugar natural, a possibilidade de vivermos uma vida normalizada, emparedada, colectivizada. Ou pode criar-se um mundo em que o viver seja imprevisível e constantemente parido, na dor e na alegria, na morte e na aflição, mas um mundo tocável e afeito às mãos que se dão em torno e às almas que se entornam, se comunicam e se entregam ao por vir.

E descobrimos que o “munde é fete pa ama”. Essa a verdade insofismável.

(Estava a tentar publicar este texto na NA e veio parar aqui.
Talvez seja um sinal.
Ficará, portanto, também aqui).

5 comentários:

Anónimo disse...

Paulo Feitais,

Vou inaugurar aqui e agora a palavra «Amigo» para ti. E digo "Kumá di corpo?" "Nha misti tu" - Deve ser o crioulo com mais erros que escrevi - Porque o "Munde é fete pa vivé" e também para a dor e a alegria. E os enganos falam tão claro a linguagem do coração. Vêm de terra nenhuma e abrigam-se em nós, capa de outono e de saudade.

Hora di bai

«Assi como pescadur ta pera maré
Assi, também Ka ta chora bo falta»

(E os erros continuam, conta a intenção!)

Um abraço

Paulo Feitais disse...

Saudades, não há enganos.
Amigo é aquele que ama e que, amando, não morre ou se recusa a morrer, posto que até a morte é para ser vivida.
E se não nos faltarmos não fazemos falta. ;)
e para ti

uma estrela!
(no firmamento do coração, as estrelas não faltam, nem morrem, estrelam-se e estatelam-se e por vezes deixam por todo o lado uma confusão tremenda, pó de estrelas e bocados de cometa espalhados por toda a parte).

Unknown disse...

Melhor mesmo é quando o pó é pó-len. *

Ana Margarida Esteves disse...

Querido Paulo,

Que bom ter-te de volta a este espaco:-)!

Um Abraco enorme,

A

Anónimo disse...

Boa Paulo! Parabéns!Um abraço!