O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A Face Oculta dos Progressos Técnicos

Os progressos técnicos, que toda a gente está confundindo cada vez mais com progresso humano, vão criar cada vez mais também um suplemento de ócio que, excelente em si próprio, porque nos aproxima exactamente daquele contemplar dos lírios e das aves que deve ser nosso ideal, vai criar, olhado à nossa escala, uma força de ataque e de triunfo; mais gente vai ter cada vez mais tempo para ouvir rádio e para ir ao cinema, para frequentar museus, para ler revistas ou para discutir política, e sem que preparo algum lhe possa ter sido dado para utilizar tais meios de cultura: a consequência vai ser a de que a qualidade do que for fornecido vai descer cada vez mais e a de que tudo o que não for compreendido será destruído; raros novos beneditinos salvarão da pilhagem geral a sempre reduzida antologia que em tais coisas é possível salvar-se.
O choque mais violento vai dar-se exactamente, como era natural, nos países em que existir uma liberdade maior; nos outros, as formas autoritárias de regime de certo modo poderão canalizar mais facilmente a Humanidade para a utilização desse ócio; sucederá, porém, o seguinte: nos países não-livres, porque nenhum há livre, mas enfim mais livres, algumas consciências se erguerão dos destroços e pacientemente, com todas as modificações que houver a fazer, converterão o bárbaro ao antigo e sempre eterno ideal de «vida conversável»; nos outros, a não sobrevir uma revolução causada pelo tédio ou pelo próprio desabar da outra metade do mundo, o trabalho será mais difícil porque se terá de arrancar os homens, no seu conjunto, à ideia de que o que vale é a segurança material, o conforto técnico e, se for possível, nenhum rumor de pensamento dialogado.
Esta não já invasão mas explosão de bárbaros terminará a nossa Idade Média, aquela que veio ininterruptamente, só superficialmente mudando de aspecto, desde o século III ou IV até nossos dias, e que se caracterizará talvez pelo esforço de fazer regressar o homem de uma vida social a uma vida natural.


Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'
Fonte: Citador

7 comentários:

Luiz Pires dos Reys disse...

Destaco, Madalena, em arbítrio pleno de ser livre, isto de Agostinho - de quem hemos de merecer chamar irmão maior (outra hodierna forma mais conveniente de dizer-se "frade menor"):

"tudo o que não for compreendido será destruído"

"raros novos beneditinos salvarão da pilhagem geral a sempre reduzida antologia que em tais coisas é possível salvar-se."

Profético, como quase sempre, Agostinho da Silva!

Quem, como ele, não esteja refém, porque enredado na teia das "crónicas da vida que passa", terá ainda fôlego e ar puro em si bastantes para olhar com olhos de escutar e ouvir com olhos de entender quanto se passa, mas por ele não repasse.

Agostinho viveu como quem está na vida tão dentro que dela se arrancava a todo o instante como quem apanha um flor que se ama e ela assim mais eterna vida alcança no sacro ofício de amá-la.

Nessa pulsão entre estar como quem não está, está a solução de solucionar isto de que ele fala, que precisamente solução não tem como a procuram.

Ela, na verdade, está alhures, não algures: está em nós, que em toda a parte estamos.


Grato, Madalena, por este sempre:

Agostinho connosco!

Anónimo disse...

Somos sobretudo impreparados para o tanto que há para ver, escutar...fruir. E como não há formação, o gosto não é gosto, o belo não é belo, é tudo opinião, relativização, empobrecimento. Não há juízo de gosto. Nem há tédio. Há desorientação. Profunda. A obra não consegue revelar a sua luz de dentro e da Origem, mas só a dos holofotes disto e daquilo para isto e para aquilo.

Sinto que aqui ficou um interlocutor para falar comigo depois do texto abaixo. E se gosto de conversar...

Obrigada.

guvidu disse...

Gostei das palavras aqui deixadas por Agostinho da Silva e, na verdd, este assunto já me tinha ocorrido, alias, ocorro-me quase diariamente pk penso assim -c/ tanta "maquinaria"/tecnologia em meu redor, começando na própria casa, pk é q não tenho + tempo para o ócio?
Não creio q o problema até seja uma má gestão de tempo mas, sobretudo, o facto de sermos dominados por aquilo q criámos, a grande doença do s´c. passado a q designamos por stress!
E outra coisa, os efeitos a nível biológico dessa mesma instrumentalização tecnológica tb não ajuda, pois demasiada radiação, som, etc tb nos afectam no dito disfrutar de nós próprios.
Obrgda pela reflexão e bem-vinda! Lerei + atentamente este texto. :)
(curiosidade, o seu apelido é-me conhecido aqui por Carcavelos...)

Luiz Pires dos Reys disse...

Precisamente, cara Isabel!

Entre a "treva" por super-abundância de luz, e a treva que se vê além dos holofotes, quais eles sejam, tenho a fio da excalibur que me há-de de decepar, samurai de mim, a sempre impreparação "para ver, escutar...fruir".
E o não existir "IEFP" algum que forme aquilo que queremos, que precisamente não tem forma;
que nos desgoste e deguste o gosto que não é gosto, o belo que não é belo, na selva desértica da floresta cerrada de tudo ser "opinião, relativização, empobrecimento".



"Não há juízo de gosto. Nem há tédio. Há desorientação. Profunda."

Juízo vem de crise que vem de onde bem sabemos no grego, ponto de decisão, de de-cisão e de cisão.
O des-gosto traz o tédio, e o tédio o gostar do ausente. Daí o ser profunda a insituação e o des-Oriente.



"A obra não consegue revelar a sua luz de dentro e da Origem"

Essas me parecem ser as duas margens, líquidas, de quanto é ilha meã: entre o "fora" da Origem e o "dentro" da obra que vem à luz, e a obra que "fora" se consuma, desde a impossível Origem dentro em nós - nesta tensão de elástico, antes e depois de ser esticado, se cumpre


"Sinto que aqui ficou um interlocutor [também vejo que ficou] para falar comigo depois do texto abaixo. E se [eu também] gosto de conversar..."


Sejamos agustinos conversantes, ou com-versantes conversos.
Até…

(outro contacto o há em meu perfil: se bem que lá está visto de todos os lados)

Unknown disse...

Aproveitando a sequência (do ócio)...

«Existem dois tipos de ócios: um (...) existe por si próprio: é um fim em si; e como, na realidade, nada é, quem toma o ócio por si próprio acaba tendo o amargo gosto da profunda e perfeita inanidade; e não tendo outro remédio senão o de se suicidar, bebendo, jogando, ou matando-se mesmo. E o que, por outro lado, lança um elo comum entre homens e culturas tão diferentes é que todos eles viviam amando, viviam apaixonados e totalmente entregues a alguma coisa, ou fosse a fraternidade do bando primitivo, ou a compreensão do Universo, ou o serviço de Deus, ou a racionalização do mundo, a alguma coisa que os superava, que os transcendia, que, englobando-os, os aniquilava na unidade do amor. O homem só poderá salvar-se do ócio que o ameaça se aprender a sair de si próprio e se utilizar toda a liberdade de que poderá fruir para que plenamente se entregue àquele apaixonado amor, que, livrando-o de ter planos particulares, o integrará no grande plano do caminho do plural para o uno; do objecto para o sujeito; dele mesmo a Deus.»
Agostinho da Silva

Unknown disse...

E já agora, nesta correnteza ainda...

http://www.youtube.com/watch?v=yp9sSte5smo

«Dá-me uma ajuda, ó médico das almas
Para escolher em que combate combater
Quem condeno eu à vida
Quem condeno eu à morte
Que me podes tu dizer

Encostado à árvore do tempo
Folhas mortas, folhas vivas, estações
Nada disto faz sentido
E o sentido do sentido não paga as refeições

Este torpor só tem uma solução
Sejamos deuses, é meter as mãos à obra
E no fazendo acontecendo
Deixar ir o coração
Que é o que nos sobra

Ao fazer-se, o mundo nasce de si próprio
Ser avô é uma alegria atravessada
Dá p'ra rir e p'ra chorar
Não temos nada com isso
E nada não é nada

Disseste um dia que tudo vale a pena
Tornar as almas mais pequenas é que não
Vamos sobre as duas patas
Juntar as partes da antena
Espalhadas pelo chão

Fecha a porta que vem frio lá de fora
Diz o coxo ao despernado, e eu aqui
Fui à procura de mim
Encontrei-me mesmo agora
E ainda não fugi

O tempo corre entre pívias e manhas
E tudo fica cada vez mais como está
Mas ao correr desta pena
Não fico à espera que venhas
Eu já sou o que virá>»
José Mário Branco

Unknown disse...

(Emigrantes da Quarta Dimensão, a canção)