O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Isso de mim que anseia despedida

Para a Adama, saudosa das suas fotos

"Isso de mim que anseia despedida
(para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro"

- Hilda Hilst, Cantares, São Paulo, Globo, 2005, p.19.

4 comentários:

Luiz Pires dos Reys disse...

Foi como cirúrgico bisturi (de saber antiquíssimo) que vai sem hesitação nem piedade directo ao que em nós é imo mais ínfero - o "que nada contém" -, que escutei a palavra-cutelo de Hilda Hilst dizer-me que se deve "preferir ausência e desconforto para guardar no eterno o coração do outro": que modo tão preciso de nomear o princípio e a raiz da amicícia, parece-me - o da fome que em pão farto alfim resulta.

Mal se permita, na verdade, que se nos golpeie o que em nós nada contém, importa precisamente que comamos o que isso não tem dentro, isto é, que o consumamos (no mais ambíguo dos sentidos) até à sua mais extreme mediação das extremidades.

Lá reside (descobri-lo-emos então), sem nome nem endereço, o que mais "somos", afinal: "para perpetuar o que está sendo" tigre para nós - qual fora nosso mesmo rosto, "reversivo, veemente de seu avesso".

E (mais do que tudo) - porque "nem se parece a mim", e porque "tem nome de ninguém" - ser em nós a "impossível oquidão de um ovo".

Fantástico!
Hildíssimo!
Gratíssimo, Antiquíssima!

Anónimo disse...

Rendida ao poema no mais íntimo (e irei repetir-me e repetir) do que em mim é o mais fundo sentir que sou, ou que sinto que é o que entrego como oferenda ao tempo, ao nada, ao oco, ou ao ovo... a pureza da memória... a flor do sal da Saudade. Rendida à clareza do poema, à leitura,à clareira, à letra e marca da pura ausência em mim de pleno e cheio... Lá, onde o desconforto se não conforta, na mesma medida da consumação do nada, guardando no eterno o "coração do outro." Que dor saborosa, Hilda!
Porque, na verdade, a nossa alma e o nosso ser, em suas vibrações conhece a sensação de não ser celeste ou terreno o que sente a “impossível oquidão do ovo”. Aqui é um mais, um para além. Grata, Antiquíssima, este eu conheço.

Depois do comentário de Lapdrey, parece-me difícil, amar e sentir tanto este poema, sem as palavras que o mesmo Lapdrey lhes acrescentou. Grata pela sua sempre grandiosa visão. E isso aumentou o meu amor pelo texto, também nele vai o meu sentir.

Obrigada, Antiquíssima, por mo lembrar.

Semente disse...

Nem todas as despedidas são belas, nem as inesperadas, nem mesmo as esperadas. Mas, esta... É!

Obrigada pela partilha deste nada sem nome*

Anónimo disse...

Não: Não é amor, mas até no jogo passam correntes de ar que abalam as peças e as figuras também choram.

Um destes dias envio-te uma fotografia a preto e branco. Consegui mesmo captar duas figuras dançarinas nuas num amplexo amoroso na crista de uma onda, no preciso momento em que um raio rasgava o céu. Mas não gastes dinheiro na moldura. Esta fotografia tem uma característica estranha. Desfaz-se à terceira vez que para ela olhares. Não sei porquê. Talvez tu percebas. Logo esta, que até ficou boa!

Grata pelo poema.