O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

diafonia


Não importam as madrugadas ausentes no espaço duma vida

A sombrearem de infinito o agora que se estende para além

Nem o que sobra depois da festa de não ter sido

Todas as ruas desaguam no rio da solidão

Porque cada homem é só o que é e nada mais

O que importa é o palpitar do coração

Que mostra que não há dois dias iguais

É a urgência das mãos de desembrulhar o tédio da continuação

A criança que há em nós gosta de receber presentes

Mesmo os ausentes podem reviver pela imaginação

É tudo o que não se deixa possuir o gélido palpitar da terminação

Das horas

E até a mansidão de antes do salto de antes do mergulho no sem fim

Até isso importa mais que o que alimenta a espera

Nem a esfera de aço da autoconfiança a Primavera é só a Primavera

O que importa é o que não se espera a gestação no útero do Inverno

Só vive no inferno quem quer ou quem pode dar-se ao luxo de não se perder

Os sapatos só se gastam porque se acomodam demasiado aos pés

Tudo o que vivemos procura a nudez essencial do que não tem que ser

O nosso entorno é um convés que nos leva ao acontecer

Quem recusa a perdição do naufrágio contenta-se só em viver

E para além disso o amor que será senão uma eterna partida

Não há paragens de autocarro no centro da utopia

Incendeia-se num cigarro o espectro sedento da melancolia

As garrafas vazias vão para o vidrão

A mente alcoolizada sabe a mofo e a papelão

Para onde irá o coração depois de usado

Não que isso importe nem a vida nem a morte

Nem a sorte que nos calhar

Se calhar só importa o que se suporta sem se suportar

Os armários cheios dos restos dos anos passados

Os nossos escafandros de ir ver gente

Almas depenadas da necessidade de parecer diferente

Os encontros e desencontros com cheiro a naftalina

Nem pasto das traças pode ser o que é pretérito

Tão cheio de vazio está o que não é pleno

Nem as formigas se aventuram pelos interstícios da vida domesticada

Só resiste à putrefacção o que nunca valeu nada

E os edulcorantes só adoçam falsamente

Só precisa de céu quem sempre acreditou na escuridão

Só sabe de paraísos quem busca a consolação

Nada é permanente e mesmo a permanência é transitória

Uma vida bem vivida não tem história

Mesmo que se beba mais chicória do que café

Por causa do medo dos ataques do coração

7 comentários:

Anónimo disse...

poema rebelde. insurrecto. filosófico. para (re)ler com calma.

Anónimo disse...

Que mania nós temos de categorizar as coisas... Se ele for rebelde deixa de ser conformista? Se ele for filosófico deixa de ser prático? E se ele (não) for ambas as coisas? Poema para ler e esquecer pois tudo é esquecimento e nada é lembrança.

platero disse...

Paulo

gostei
"a criança que há em nós gosta de receber presentes"
um abraço grande

afhahqh disse...

Kunzang: desconcertas-me.

Anónimo disse...

E sonhava eu um dia vir a ser um grande concertista...

Maria da Luz disse...

Sorriso ...

Anónimo disse...

"Em cima, o riso eterno da Ilusão;

Em baixo, a eterna Lágrima ilusória"

Teixeira de Pascoaes