O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 28 de agosto de 2010

Estou aqui
Como podia estar acolá dentro de um vaso
Numa de experimentar ser flor
Que come e bebe do que lhe dão

Podia estar na Jamaica a apanhar calor
Ou no fundo de um poço possante
A criar laços de amizade com o silêncio

Podia estar em qualquer parte do mundo
A contar anedotas num palco
Estar viciado em literatura moderna
E comer páginas inteiras para fingir que morro

Podia dizer que sou outra coisa
Para além daquilo que sou e teimo
Pedir a direcção do mar a uma gaivota
Que veio à cidade comer uns aperitivos

Podia ir mais abaixo que o fundo de mim
Verificar se por lá existe alguma porta aberta
Por onde o vento arrasta os mendigos,
Os frutos e as manhãs nucleares

Cantar o amor à janela de uma janela qualquer
Ou medir distâncias entre o passado e o futuro
Com um morto em pé
Ou fundar o amor a par da revolução que aí vem

Podia engolir a bússola que me há-de dizer
Para que lado fica os poetas mortos
que nas mulheres fazem alegrias
Onde é que se sonha com uma perna às costas
Quem anda por aí a dizer que a verdade pariu pela boca

Podia evitar sal na comida e assim evitar poemas salgados
Cair ao chão, partir-me em quatro
E aprender como se inicia uma nova vida
Sem dar baixa nas finanças

Procurar um céu dentro do céu
Ver Deus a costurar asas aos Homens
Com o fio de uma extensa lágrima

Podia morrer de vez em quando
Para assustar o sonho e a vida
Cantar como se fosse o primeiro
A quem a morte o beijou

Podia ir à casa do Herberto H.
E falar-lhe das minhas plantações de poemas
Mas sei que o Herberto H. tem a sua plantação de poemas
Mais bem cuidada do que a minha
E está louco, mas a rir,
Porque os homens acham que a plantação faz-se na terra

Espero um dia colher bons poemas à boca de sino
E chamar os amigos cá a casa para um almoço
Dar um verso a cada um
E no final chamar o cão-poeta para fazer um bailado

Podia ser marinheiro, ideia a percorrer o mar,
Azul terra, verde céu, menino branco no colo de mãe-preta,
Podia ser grande como o Herberto H.
Ou como o Daniel
Que antes de ser livro fora árvore andante

E eu podia ser o nem tão pouco mais ou menos
Ou aquela luz que a noite roubou
Sim podia, mas a verdade é que eu estou aqui
E daqui vejo tudo a crescer
Os poemas também
Isto é,
Desde que o sol não seja em demasia
E as minhas mãos não façam tremer a paisagem

1 comentário:

platero disse...

munta bonito

queres vender?

abraço